A oralidade, a ilustração e a escrita estiveram presentes no último dia do Festival Caju de Leitores. Na parte da manhã, os saberes ancestrais e as histórias passadas pelos avós e encantados encheram a memória e imaginação dos participantes.
A Pajé Japira Pataxó trouxe o conhecimento das matas, restingas, capoeiras e brejos para o Caju. Falou sobre os banhos e chás que aprendeu com a avó. Ela revelou sobre a ajuda dos espíritos ancestrais e em especial um encantado: Caipora – a mãe da mata – quem a ajudava a encontrar as mais de 130 ervas descritas em seu livro.
“Aroeira, Pitanga, Alecrim, Almesca, Pinhão Roxo, Café Beirão, Jambolão, Casca de Mangaba, Carqueja, Fedegosão, Amora e o Jaborandi são alguns dos ‘matos’ que uso para os banhos e chás. Muita gente me procura para tratar suas dores. E, tal qual os remédios na farmácia, é preciso seguir a prescrição. Para os banhos sempre uso 3 ervas e a escolha delas depende do que vai ser curado”, revela a pajé.
Segredos
Japira também revelou alguns segredos da Floresta. “Antes de entrar na mata para a caça, os índios se preparam levando fumo de rolo para a Caipora cachimbar. Meu marido foi caçar na mata e se esqueceu de deixar o fumo para a guardiã dos animais e ‘se perdeu’. Depois de caminhar por um tempo em círculos, ele se lembrou da prenda para o encantado e pouco tempo depois, a estrada se abriu a sua frente. A Caipora tem o poder de se transformar em qualquer ser vivo: pássaro, bicho, gente, cavalo”, comentou, explicando que crianças pagãs, na mata, são levadas por este encantado.
Auritha Tabajara sente em dona Japira, a força de sua avó e ressaltou que os ensinamentos ancestrais ultrapassam o físico. Antes da Pandemia, Auritha esteve em sua Aldeia e na partida, sua avó perguntou se ela estaria pronta para ficar.
“Minha avó me perguntou se estava preparada para voltar de mala e cuia. Eu estava em um grande momento de minha carreira, com muitos eventos para mostrar nossa cultura e disse a ela que ainda tinha trabalho ‘na cidade’ para fazer. Lembro do olhar dela de quem dizia que eu estava enganada. Mal sabia eu, o que ela previa. Dito e feito. O começo de 2020, estava eu vindo de mala e cuia para a Aldeia”, contou, dizendo que para tratar seu povo contra o Covid, sua avó fazia um chá de gergelim preto e caroço de algodão pilados.
Homens e Animais
Antes de iniciar a contação de histórias com Sairi Pataxó, Adriana Pesca fez reflexões para a compreensão das histórias do universo de seu povo e sua trajetória, e a importância de se desconstruir estas questões do que é fato, mito e contos.
“Essa cultura ocidental acaba colocando muito nas caixinhas o que é fábula, um conto e transforma todas as histórias em ficção. É importante desconstruir estas questões para entender as narrativas indígenas, que passam da oralidade para a escrita. A narrativa nos permite mais encanto, nos permite expressar sons e criar um espaço para o imaginário. A escrita perde grande parte dessas características”, declarou.
Adriana é poetisa e declamou ‘Memórias de um Povo’. Ela contou a história coletiva ‘Onça, Jupati e Macaco’ e uma história contada por sua mãe, que faz parte de sua infância.
Sairi concordou com Adriana e falou dos seres invisíveis e da catequização que trouxe o olhar ocidental para as histórias ancestrais as tratando como contos e mitos. “Em meu livro ‘Boitatá e Outros Casos de Índio’ eu relato histórias vivas, como da onça parda – animal não mais existente em nossa região; do Lobisomem; da Caipora; do Boitatá; a Sereia dos Lagos [Yemani] Sereia de Beira da Praia e a Janaína, de alto-mar, que são conhecidas por muitos de nossa região. Estes relatos vêm de nossos velhos – muitos já não estão mais aqui, mas vivem nas palavras e em seus descendentes”, declarou. Sairi ainda declamou um poema e leu um dos escritos de seu livro.
Participações
Na ocasião tivemos diversas participações mais que especiais: Miguel, filho de Adriana Pesca, leu a História ‘Mãe da Lua e Bacurau’; Valter Andrade, da Escola de Coroa Vermelha recitou o poema Terra Amada, produzida por ele; Júlia, também de Coroa Vermelha, declamou a poesia autoral ‘Amado Brasil’ e ainda teve ‘Festa no Céu’ contada pelo aluno Pedro, história repassada por seus ancestrais.
O dia ainda contou com uma intervenção de Maria Rios, que fez os presentes dançarem ao som de Vermelho, na voz de Fafá de Belém.
O Coletivo Muká Mukaú trouxe como tema para a palestras, ‘A Oralidade e a Escrita para o Protagonismo Jovem em Ações Socioambientais’. Iniciado em 2015, o Coletivo realizou uma intervenção com rima e uma atividade com reflexões sobre o lixo nas praias, principalmente de resíduos plásticos.
Um dos componentes do Coletivo, Gabriel Ribeiro, falou um pouco da participação do Muká Mukaú. “Aqui em Caraíva temos uma das representantes do coletivo a Janice, a articuladora de nossa presença no evento. Nosso maior incentivo é mostrar a participação da juventude dentro das causas ambientais e compartilhar com a população indígena, principais ativistas desta questão. A roda é sempre presente em nossos encontros e estar aqui absorvendo conhecimento do povo Pataxó e poder repassar essa vivência para outros é muito importante, principalmente neste ambiente rico de saber, em todas as áreas”, salientou, informando que o Coletivo tem apoio do Projeto Coral Vivo.
Reflexão
No encontro, os presentes foram convidados a escolher um dos objetos resgatados em redes de pesca e falar sobre sua impressão e sobre o que este trazia à memória. Além disso, trouxe a reflexão sobre o trajeto do produto até sua origem final – o leito do mar. A produtora cultural Alice Mendes pegou, entre os objetos, um brinquedo imitando uma concha.
“Na roda de reflexão, eu me identifiquei com uma concha de brinquedo, que remeteu às brincadeiras da infância na praia e ao hábito de pegar conchinhas. Não sabia, mas nessa época eu também intervia no ecossistema. Hoje ao invés de conchas, minha intervenção na praia é pegar o lixo deixado na areia”, disse a produtora que esteve apenas no último dia do Festival, mas acompanhou todo o evento pelas redes sociais.
Rede Oxe
Outra participação importante foi a Rede Oxe de Bibliotecas Comunitárias da Bahia. Na ocasião, os representantes falaram sobre a entidade que tem representante em Caraíva: Valéria Cardoso.
“Sou uma das pessoas que compõe a Associação da Biblioteca de Caraíva, sediando temporariamente a Escola Municipal da vila. Nossa função é fazer dos livros, um movimento de ocupação. Com isso, e com a demanda de alunos da Aldeia Xandó, entendeu-se que era preciso ter literatura afro e indígena. A entrada da biblioteca para Rede Oxe, nos trouxe mais livros e também a oportunidade de conhecer e participar dos editais”, comentou.
Boas notícias
A diretora da escola Nargela Carvalho também trouxe boas notícias para a Escola Indígena do Xandó: além de serem premiados com 40 títulos indígenas pelo Caju, a escola foi uma das três escolhidas para receber uma biblioteca itinerante.
Para finalizar o evento, a escritora Auritha Tabajara compôs uma canção e a apresentou aos presentes, emocionando muitas pessoas. Se existe alguma palavra para descrever o Festival e que ficou gravada na mente de todos foi Nitxi Awery [Muito Obrigado].
O Festival CAJU de Leitores é gratuito e tem patrocínio do Instituto Cultural Vale e da MMB Metals com incentivo da Lei Rouanet, Ministério da Cultura. Mais informações sobre o evento pelo site http://www.cajuleitores.com.br/e pelo Instagram @cajuleitores.