Nesta quarta-feira, dia 6, o Festival Caju de Leitores foi embalado pela oralidade dos anciãos de Caraíva e por grandes sabedores da Cultura e História Pataxó. Após a abertura, que contou com participação dos pajés Ouriço e Akitxawã, exaltando a ancestralidade e a natureza, foi a vez de homenagear Valdemy Sisnande, escritor de ‘A Saga de Caraíva’ e ‘Memórias de Caraíva’ em uma roda de conversa que contou com a presença de moradores nativos do Vilarejo, seu Lomanto; e Edite e Edilza, filhas do primeiro telegrafista local.
Valdemy falou sobre suas obras e sobre a concepção de ‘Memórias’, que teve o conteúdo todo ilustrado por ele. Entre a ideia e a publicação do livro se passaram 3 anos. “A maior dificuldade para escrever o livro foram as pesquisas, que não se resumiram apenas aos relatos de moradores daqui, mas também a registros históricos adquiridos em documentos em Porto Seguro. O fato mais marcante inserido na publicação foi a Revolução da Piaçava. Meu avô me contava esta história. Era emocionante”, revelou Valdemy, que está na produção de seu próximo livro: um romance.
Vila de seu Lomanto
Contador de histórias, seu Lomanto dividiu um pouco de seu conhecimento com os presentes, os fazendo rir quando revelou que eles e seus comparsas, nas festas do Vilarejo, ‘roubavam galinhas’, em uma Caraíva que pouco se assemelha ao que é hoje. Um vilarejo onde, o samba, o forró e a lambada eram acompanhados por radiolas e rádios a pilha, já que eletricidade mesmo só chegou à Vila em 2007. Um lugar onde a rede de tucum era feita pelos indígenas e as canoas à vela levavam à ‘cidade’ o que era produzido pelos nativos. Época em que o Boitatá assustou muita gente e que a mula sem cabeça foi vista poucas vezes e inclusive perseguida, segundo Edilza.
Filhas de seu Pacífico, Edilza e Edite são nativas de Caraíva. Mas para deixarem sua marca na Vila, passaram um bom tempo em Salvador, estudando para ser a antecessora e mestre de muitos dos adultos de hoje. “Fui professora por oito anos e muitos foram meus alunos. Neste tempo, ajudei a formar e educar cerca de 150 pessoas. Os alunos sempre foram respeitosos comigo. Fiquei muito triste quando parei de lecionar. Mas para assumir o cargo de minha mãe, há quarenta anos me tornei a ‘cuidadora’ da igreja. Faço limpeza e cuido da igreja e ajudo a manter as tradições e festejos”, argumentou Edilza. Sobre o Boitatá, a professora disse que só viu duas vezes.
Edite se emociona até hoje por seus feitos, já que ela e a irmã estiveram hoje ao lado do ex-aluno Valdemy e do padrinho Lomanto, contando um pouco do que foi a vida em Caraíva. “Quando voltei aos 21 anos, depois de me formar no magistério e casada, pude fazer o legado da minha vida melhorar a de meus conterrâneos. É muito emocionante e tenho muitas saudades dessa época”, explicou ela.
Resistência
Símbolos de resistência, Maria Coruja, Dona Joana, Fermal Pataxó, Japira Pataxó e Jandaia também trouxeram o episódio dolorido do Fogo de 51 e do início das demarcações de terra. Testemunhas oculares desses episódios, seus rostos sofridos denunciam os abusos que esta etnia, como tantas outras sofreram por tantos anos.
Maria Coruja viveu o Fogo de 51 ainda menina e presenciou o êxodo, junto aos parentes, para se manter viva. Filho de Maria Coruja, Fermal, junto com um parente, escreveu uma canção para oralizar a dor sofrida pelos ancestrais e para se fazer conhecer a história do povo Pataxó. Entre os versos, ‘meu pai saiu corrido de sua aldeia, com uma criança ao seu lado e não [a] deixava (…) eles passaram com fome muitos dias, mas a criança inocente não sabia’.
Jandaia Pataxó, também falou da fome e do sofrimento. “Para chegarmos até aqui, foram muitas vidas sofridas, muito sangue derramado e muitas lágrimas pelo rosto desses guerreiros. Não sofri o tanto que elas sofreram, mas minha história, mesmo recente também teve luta. E nossa vontade de viver e vencer vem do Criador, qualquer que seja o nome que dão a ele: Tupã, Jesus ou Deus. Hoje temos índios que escrevem nossa história, mas nós somos a história viva. Hoje nossa Mãe Barra Velha tem muitos filhos e são eles que contam nossa vivência”, contou. Ela relembrou os grandes guerreiros como Tururim, considerado um livro vivo, hoje fechado.
Saberes
Como ela, Japira Pataxó é, como se diz na canção Pataxó ‘balança, balança mais não cai, quando vou cair tem meu Tupã pra segurar’. No papel ela é Antonia, na Aldeia é Japira. Pajé da aldeia Pataxó Novos Guerreiros, em Porto Seguro, a escritora de ‘Saberes dos Matos Pataxó’ contou um pouco sobre como adquiriu o conhecimento através de sua avó para se transformar em parteira, rezadeira e ativista.
“Aprendi com minha vó e ela era a parteira de toda a região até Itamaraju. Para comprar o manguti [alimento] minha vó fazia linhas de tucum e seu avô tirava a piaçava. Quando saiu a demarcação de terras, uma parte teve que ser ‘dada’ aos guardas que para nos ‘pirraçar’, soltavam seus animais nas nossas roças. Nossa luta continua e nem em nossos protestos estamos ilesos. No último episódio, uma mulher jogou o carro em cima do povo, ferindo três índias. Se fosse o contrário, o índio seria punido. Estamos na luta pelo nosso povo”, comentou.
Caminhada
Dona Joana também é uma dessas guerreiras. E a sua força e coragem veio de sua mãe que enfrentou uma longa caminhada para conseguir trazer a Funai para salvaguardar o território indígena.
“Na época da demarcação de terras, os fiscais do Ibama não nos deixavam tirar de nosso território, o sustento. Não podia tirar piaçava, nem nada. Minha mãe ao ver o povo passando fome, foi com meu irmão – a pé – até Porto Seguro falar com o prefeito para pedir pelos nossos direitos”, explicou. Segundo ela, o prefeito, ao ouvi-la, escreveu uma carta para a Funai. Após um mês, o órgão estava aqui para garantir os seus direitos.
Patxohã
A última participação da noite foi de Awoy Pataxó, Raoni Pataxó e Arissana Pataxó, na palestra lute como a Língua Patxohã. Awoy explicou que a língua passou por um processo de adormecimento cultural e da língua. “Por conta do massacre, do preconceito e do preconceito na região, nosso povo ficou com vergonha de assumir a sua identidade, até mesmo como uma forma de sobrevivência. Os anciãos que guardavam estes costumes e na memória ajudaram a retomar a língua.
O estudioso revela que por meio de um grupo de pesquisa com professores e pesquisadores das comunidades de Coroa Vermelha e Barra Velha, além da Jaqueira, que também estava em processo de fortalecimento e manutenção da língua, eles iniciaram o trabalho, que se transformou em um projeto. “Fomos para algumas comunidades para extrair este conhecimento [do Patxohã] e fazer o levantamento. Mas somente o que era falado na comunidade era pouco para a retomada linguística. A luta é constante para sistematizar, socializar com as demais comunidades e dar continuidade ao que outros parentes já vinham realizando”, finalizou.
O Festival CAJU de Leitores é gratuito e tem patrocínio do Instituto Cultural Vale e da MMB Metals com incentivo da Lei Rouanet, Ministério da Cultura. Mais informações sobre o evento pelo site http://www.cajuleitores.com.br/e pelo Instagram @cajuleitores.